Quando recebi o convite para o intercâmbio intitulado “Desigualdade: perspetiva local e global”, não tive muitas dificuldades para decidir sobre o que falar. Reconhecendo que seria um exercício desafiador, porém o espaço de diálogo já é um caminho para pensarmos sobre as diferentes questões das desigualdades desde as econômicas, classe, gênero, raça, idade que estão diretamente ligadas à relação de poder estabelecida desde os princípios dos tempos e, comummente, é conhecido como “a lei dos mais fortes”. Para situar a minha fala, tendo em conta as diferentes desigualdades existentes em Cabo Verde, optei por fazer uma reflexão sobre a desigualdade em Cabo Verde a partir do enfoque social e territorial. Com o objetivo de refletir como a organização do espaço reflete e perpetua as desigualdades sociais em Cabo Verde.
Para falar das
desigualdades, acredito que o lugar de fala (RIBEIRO, 2017) tem um peso de suma
importância. Por isso passo a fazer a minha breve apresentação: Sou Evandra, filha
de pai agricultor e mãe “doméstica”. Nasci numa família que não tem um nome de
peso, em Ribeirão de Cal – uma pequena localidade do interior do concelho de
São Domingos – atual cidade com o mesmo nome. Uma zona sem eletricidade na
altura em que caminhava vários quilómetros, às vezes de madrugada, para buscar
água para o consumo e para os animais. Caminhava quilómetros para chegar à
escola, que era numa outra localidade – Mendes Faleiro. O mesmo acontecia em
situação de doença, lazer e religioso. Uma localidade com alta taxa de
desemprego, em que as famílias dependiam e ainda dependem da criação de gado e
agricultura, à semelhança da grande maioria da população cabo-verdiana,
sobretudo as do mundo rural.
Dada a constante
seca, que historicamente sempre se fez presente em Cabo Verde, que gerava falta
de alimentos que garantissem a sobrevivência, os meus pais sentiram-se obrigados
a buscar alternativas fora de Ribeirão de Cal. A cidade da Praia foi a nossa
única opção. Em 2003, mudei para a periferia da cidade da Praia (Bela Vista)
onde tive mais facilidade para ter acesso a diferentes serviços, sobretudo, a
educação. Caminhava menos de 10 minutos para chegar a escola.
Nesta senda, o
lugar de fala está a ser vista aqui enquanto mecanismo que surgiu como
contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos
privilegiados em espaços de debate público (RIBEIRO, 2017). O lugar de fala
defende que há diferentes “efeitos de verdade” a depender de quem anuncia o
discurso, sobretudo nas populações alvos de políticas públicas, vista enquanto
setor menos audíveis ao poder público (mulheres em situação de violência,
mulheres do mundo rural, conjugalidades LGBT e outros gêneros). Trouxe à minha
realidade para mostrar como é que a desigualdade á pautada pelo território.
A ocupação do
espaço e as desigualdades em Cabo Verde são questões históricas, que veio com
as “histórias do povoamento”, sobretudo no mundo rural, bem como entre as
ilhas. A formação histórica da sociedade cabo-verdiana e a sua caraterização a
nível do continente africano denuncia uma série de questões para pensarmos a
desigualdade em Cabo Verde. A estruturação da sociedade cabo-verdiana foi
construída com base no fator étnico/racial, a partir de dois grupos que
definitivamente se fixaram em primeiro lugar na ilha de Santiago - Europeus
livres e africanos escravizados. Com um diferencial, o “Senhor-Pai-Europa e
Escrava-Mãe-África” (MONTEIRO, 2015, p.92), como é realçado pela Eurídice
Monteiro retratando o colonialismo em Cabo Verde e a sua “retórica da excecionalidade
cabo-verdiana (MONTEIRO, 2015, p.93).
No cenário
cabo-verdiano prevalecia as desigualdades de classe, gênero, raça e territorial.
A ocupação do espaço nas ilhas, sobretudo na ilha de Santiago, evidencia essas
desigualdades. Assim sendo, o território pode ser uma via de
conhecimento da particularidade das práticas sociais.
Estou a pensar o
território a partir das relações de poder entre os indivíduos e instituições (RAFFESTIN,
1993). Os diferentes atores que se apropriam do espaço e vão formar os
territórios, imprimindo nestas suas caraterísticas relacionais de acordo com os
seus objetivos, que podem influenciar a ordem económica, politica e cultura.
O bairro de
Plateau e o bairro de Ribeirão de Cal são caso, do qual teríamos elementos para
pensar, sobretudo nos atores envolvidos e as relações de poder que são estabelecidos
com as diferentes instituições públicas.
Assim sendo, o território
torna-se um importante instrumento de leitura das dinâmicas existentes no
espaço. E entendendo a dinâmica da
territorialização de Cabo Verde, poderemos ter pistas para refletir sobre a
desigualdade social em Cabo Verde.
A desigualdade
social a nível prático e conceitual, não é novo no cenário cabo-verdiano, porém
não é colocado em pauta enquanto categoria analítica. Uma das máximas famosas
no cenário cabo-verdiano - “Djan Branku
Dja[1]”,
traduz a existência das desigualdades, sobretudo sociais em Cabo Verde, para
além da desigualdade racial, de renda e territorial. No período colonial em Cabo
Verde, foi imposto o modelo econômico escravocrata, em que o escravo era a
principal mão-de-obra, do qual não tinha participação na renda. Os demais
trabalhadores, sobretudo mulheres, pobres não recebiam terra para trabalhar.
Trabalho este em que o valor e o tempo do trabalho assalariado nunca foi
regulamentados, no qual dependia da boa vontade (ou não) dos morgados.
No Cabo Verde
atual, 43 anos após independência, em que os dados nacionais apontam para o
maior índice de pobreza no mundo rural, sobretudo nas famílias chefiada por
mulheres. Uma taxa de desemprego juvenil (14-24 anos) que continua a crescer,
tendo passado de 34,6% em 2013 para 50,8% em 2014, representando um aumento de
16,2 da população (www.ine.cv, consultado em 25 de setembro de 2017). Agravado
com a falta da chuva de 2017, a fome e a pobreza trouxeram a tona a questão da
desigualdade social com maior ênfase ainda em Cabo Verde. Discursos estes que é
evidenciado, sobretudo, quando é colocado em pauta a questão da regionalização,
reforçando a existência das desigualdades entre as ilhas; as questões de saúde,
quando se fala dos transportes entre as ilhas e nas evacuações de doentes e na
participação das mulheres na política.
Segundo Oliveira
(2015, p.2):
A busca pela superação da desigualdade
social na sociedade moderna vem sendo abordada sob duas perspectivas: a ideia
de igualdade absoluta (igualdade total na situação socioeconômica dos
indivíduos) e igualdade realtiva (igualdade de oportunidades a todas as pessoas
da sociedade). A absoluta é irrealizável, uma utopia, devido à natureza de
insatisfação das pessoas em acumular bens, dinheiro, poder, riqueza e, por isto
mesmo, uma permanente disputa entre indivíduos, expressada pela máxima medida
de encher nunca enche. A igualdade relativa torna-se possível à medida que
os grupos sociais menos favorecidos conquistam mais direitos; e estes se
traduzem em políticas públicas de distribuição de renda, gerando equidade
social (DIAS, 2001; GIDDENS, 2005).
O autor ainda fala
da equidade social (OLIVEIRA, 2015, p.3):
vista como a justa distribuição de renda (riqueza
produzida pelo trabalho) na sociedade, compreendida como o direito de as
pessoas participarem não “só da atividade política e econômica, mas também o
direito de contar com os meios de subsistência (adequada segundo suas
necessidades) e com o acesso a um conjunto de serviços públicos que permitam
manter um nível adequado de vida”
Longe de esgotar
esta reflexão, realço que falar da desigualdade social, refere sempre à
situação de carência: que vai desde a educação de qualidade; falta de
oportunidades; poucas oportunidades de emprego; ausência de estímulos para o
consumo de bens culturais como ir a cinema, teatro e museus e até mesmo de
conhecer a própria história do continente africano. Dentro de uma conjuntura em
que privilegia a educação formal e com alguma resistência para outras
possibilidades de ensino.
Em Cabo Verde não
tem como passar por cima das questões das desigualdades, sem falar das questões
de gênero. Na história de Cabo Verde o homem sempre teve papel de destaque,
reconhecido. A partir da minha pesquisa de graduação em que retratei as
desigualdades entre homens e mulheres na prática da agricultura nas imediações
na Barragem de Poilão, trouxe resultados que é um pouco o reflexo do cenário de
todo o país. No qual revela que os trabalhos diários e os cuidados – que mantém
a união e bom desenvolvimento do agregado familiar são da responsabilidade das
mulheres, no qual não é valorizado e o próprio estado não cria condições que
reconheça este trabalho; - Salário – na agricultura no mesmo trabalho, a mesma
carga horária, com remuneração diferenciada entre homens e mulheres no final do
dia. - Herança – o acesso as terras tem acesso limitado para as mulheres;
E mais tarde,
trabalhei com as politicas públicas que relacionam com o sector da agricultura,
para verificar como as relações de gênero se relacionam com os enunciados de
políticas públicas dentro do cenário de desenvolvimento rural, impulsionado
pelas construções de barragens em Cabo Verde. Nessas pesquisas ficou evidente
que as questões de gênero têm um peso importante na definição e ocupação de diferentes
espaços nas esferas sociais. O que é fortemente pautado pelas questões das
desigualdades sociais. O que traduz na perpetuação da desigualdade social e
territorial pelo próprio Estado e sem políticas sociais que possibilite a todos
os cabo-verdianos, sobretudo as mais afetadas de viverem “felizes”.
Assim sendo, que
alternativa para a desigualdade em Cabo Verde, dada a sua condição
arquipelágico e a própria territorialização em cada ilha, cidade e localidades?
Num contexto que desde a colonização, até os dias atuais do território
cabo-verdiano, praticou-se a postura de “indiferença” em relação às desigualdades
sociais, pautada pela ocupação dos espaços.
Bibliografia
MONTEIRO,
Eurídice. Entre os Senhores das ilhas e
as descontentes – Identidade, Classe e Género na Estruturação do campo político
em Cabo Verde. Edições da Uni-CV. Colecção Sociedade Vol.6. 2015.
OLIVEIRA,
Francisco. Desigualdade Social:
uma trajetória de insistência no Brasil. VII Jornada Internacional
Políticas Públicas, Marinhão, Brasil, 2015.
RAFFESTIN, Claude.
Por uma geografia do poder. Tradução
de Maria Cecília França. São Paulo: Ática,1993.
RIBEIRO, Djamila. O que é Lugar de fala? Letramento,
2017.
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[1] Longe de se esgotar na essência do
termo, o mesmo pode ser utilizado para se referir a mudança de status social.