terça-feira, 28 de agosto de 2018

Desigualdade em Cabo Verde: um enfoque social e territorial

Por Evandra Moreira

Quando recebi o convite para o intercâmbio intitulado “Desigualdade: perspetiva local e global”, não tive muitas dificuldades para decidir sobre o que falar. Reconhecendo que seria um exercício desafiador, porém o espaço de diálogo já é um caminho para pensarmos sobre as diferentes questões das desigualdades desde as econômicas, classe, gênero, raça, idade que estão diretamente ligadas à relação de poder estabelecida desde os princípios dos tempos e, comummente, é conhecido como “a lei dos mais fortes”. Para situar a minha fala, tendo em conta as diferentes desigualdades existentes em Cabo Verde, optei por fazer uma reflexão sobre a desigualdade em Cabo Verde a partir do enfoque social e territorial. Com o objetivo de refletir como a organização do espaço reflete e perpetua as desigualdades sociais em Cabo Verde.
Para falar das desigualdades, acredito que o lugar de fala (RIBEIRO, 2017) tem um peso de suma importância. Por isso passo a fazer a minha breve apresentação: Sou Evandra, filha de pai agricultor e mãe “doméstica”. Nasci numa família que não tem um nome de peso, em Ribeirão de Cal – uma pequena localidade do interior do concelho de São Domingos – atual cidade com o mesmo nome. Uma zona sem eletricidade na altura em que caminhava vários quilómetros, às vezes de madrugada, para buscar água para o consumo e para os animais. Caminhava quilómetros para chegar à escola, que era numa outra localidade – Mendes Faleiro. O mesmo acontecia em situação de doença, lazer e religioso. Uma localidade com alta taxa de desemprego, em que as famílias dependiam e ainda dependem da criação de gado e agricultura, à semelhança da grande maioria da população cabo-verdiana, sobretudo as do mundo rural.
Dada a constante seca, que historicamente sempre se fez presente em Cabo Verde, que gerava falta de alimentos que garantissem a sobrevivência, os meus pais sentiram-se obrigados a buscar alternativas fora de Ribeirão de Cal. A cidade da Praia foi a nossa única opção. Em 2003, mudei para a periferia da cidade da Praia (Bela Vista) onde tive mais facilidade para ter acesso a diferentes serviços, sobretudo, a educação. Caminhava menos de 10 minutos para chegar a escola.
Nesta senda, o lugar de fala está a ser vista aqui enquanto mecanismo que surgiu como contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos privilegiados em espaços de debate público (RIBEIRO, 2017). O lugar de fala defende que há diferentes “efeitos de verdade” a depender de quem anuncia o discurso, sobretudo nas populações alvos de políticas públicas, vista enquanto setor menos audíveis ao poder público (mulheres em situação de violência, mulheres do mundo rural, conjugalidades LGBT e outros gêneros). Trouxe à minha realidade para mostrar como é que a desigualdade á pautada pelo território.
A ocupação do espaço e as desigualdades em Cabo Verde são questões históricas, que veio com as “histórias do povoamento”, sobretudo no mundo rural, bem como entre as ilhas. A formação histórica da sociedade cabo-verdiana e a sua caraterização a nível do continente africano denuncia uma série de questões para pensarmos a desigualdade em Cabo Verde. A estruturação da sociedade cabo-verdiana foi construída com base no fator étnico/racial, a partir de dois grupos que definitivamente se fixaram em primeiro lugar na ilha de Santiago - Europeus livres e africanos escravizados. Com um diferencial, o “Senhor-Pai-Europa e Escrava-Mãe-África” (MONTEIRO, 2015, p.92), como é realçado pela Eurídice Monteiro retratando o colonialismo em Cabo Verde e a sua “retórica da excecionalidade cabo-verdiana (MONTEIRO, 2015, p.93).
No cenário cabo-verdiano prevalecia as desigualdades de classe, gênero, raça e territorial. A ocupação do espaço nas ilhas, sobretudo na ilha de Santiago, evidencia essas desigualdades. Assim sendo, o território pode ser uma via de conhecimento da particularidade das práticas sociais.
Estou a pensar o território a partir das relações de poder entre os indivíduos e instituições (RAFFESTIN, 1993). Os diferentes atores que se apropriam do espaço e vão formar os territórios, imprimindo nestas suas caraterísticas relacionais de acordo com os seus objetivos, que podem influenciar a ordem económica, politica e cultura.
O bairro de Plateau e o bairro de Ribeirão de Cal são caso, do qual teríamos elementos para pensar, sobretudo nos atores envolvidos e as relações de poder que são estabelecidos com as diferentes instituições públicas.
Assim sendo, o território torna-se um importante instrumento de leitura das dinâmicas existentes no espaço. E entendendo a dinâmica da territorialização de Cabo Verde, poderemos ter pistas para refletir sobre a desigualdade social em Cabo Verde.
A desigualdade social a nível prático e conceitual, não é novo no cenário cabo-verdiano, porém não é colocado em pauta enquanto categoria analítica. Uma das máximas famosas no cenário cabo-verdiano - “Djan Branku Dja[1]”, traduz a existência das desigualdades, sobretudo sociais em Cabo Verde, para além da desigualdade racial, de renda e territorial. No período colonial em Cabo Verde, foi imposto o modelo econômico escravocrata, em que o escravo era a principal mão-de-obra, do qual não tinha participação na renda. Os demais trabalhadores, sobretudo mulheres, pobres não recebiam terra para trabalhar. Trabalho este em que o valor e o tempo do trabalho assalariado nunca foi regulamentados, no qual dependia da boa vontade (ou não) dos morgados.
No Cabo Verde atual, 43 anos após independência, em que os dados nacionais apontam para o maior índice de pobreza no mundo rural, sobretudo nas famílias chefiada por mulheres. Uma taxa de desemprego juvenil (14-24 anos) que continua a crescer, tendo passado de 34,6% em 2013 para 50,8% em 2014, representando um aumento de 16,2 da população (www.ine.cv, consultado em 25 de setembro de 2017). Agravado com a falta da chuva de 2017, a fome e a pobreza trouxeram a tona a questão da desigualdade social com maior ênfase ainda em Cabo Verde. Discursos estes que é evidenciado, sobretudo, quando é colocado em pauta a questão da regionalização, reforçando a existência das desigualdades entre as ilhas; as questões de saúde, quando se fala dos transportes entre as ilhas e nas evacuações de doentes e na participação das mulheres na política.
Segundo Oliveira (2015, p.2):
A busca pela superação da desigualdade social na sociedade moderna vem sendo abordada sob duas perspectivas: a ideia de igualdade absoluta (igualdade total na situação socioeconômica dos indivíduos) e igualdade realtiva (igualdade de oportunidades a todas as pessoas da sociedade). A absoluta é irrealizável, uma utopia, devido à natureza de insatisfação das pessoas em acumular bens, dinheiro, poder, riqueza e, por isto mesmo, uma permanente disputa entre indivíduos, expressada pela máxima medida de encher nunca enche. A igualdade relativa torna-se possível à medida que os grupos sociais menos favorecidos conquistam mais direitos; e estes se traduzem em políticas públicas de distribuição de renda, gerando equidade social (DIAS, 2001; GIDDENS, 2005).
O autor ainda fala da equidade social (OLIVEIRA, 2015, p.3):
vista como a justa distribuição de renda (riqueza produzida pelo trabalho) na sociedade, compreendida como o direito de as pessoas participarem não “só da atividade política e econômica, mas também o direito de contar com os meios de subsistência (adequada segundo suas necessidades) e com o acesso a um conjunto de serviços públicos que permitam manter um nível adequado de vida”
Longe de esgotar esta reflexão, realço que falar da desigualdade social, refere sempre à situação de carência: que vai desde a educação de qualidade; falta de oportunidades; poucas oportunidades de emprego; ausência de estímulos para o consumo de bens culturais como ir a cinema, teatro e museus e até mesmo de conhecer a própria história do continente africano. Dentro de uma conjuntura em que privilegia a educação formal e com alguma resistência para outras possibilidades de ensino. 
Em Cabo Verde não tem como passar por cima das questões das desigualdades, sem falar das questões de gênero. Na história de Cabo Verde o homem sempre teve papel de destaque, reconhecido. A partir da minha pesquisa de graduação em que retratei as desigualdades entre homens e mulheres na prática da agricultura nas imediações na Barragem de Poilão, trouxe resultados que é um pouco o reflexo do cenário de todo o país. No qual revela que os trabalhos diários e os cuidados – que mantém a união e bom desenvolvimento do agregado familiar são da responsabilidade das mulheres, no qual não é valorizado e o próprio estado não cria condições que reconheça este trabalho; - Salário – na agricultura no mesmo trabalho, a mesma carga horária, com remuneração diferenciada entre homens e mulheres no final do dia. - Herança – o acesso as terras tem acesso limitado para as mulheres;
E mais tarde, trabalhei com as politicas públicas que relacionam com o sector da agricultura, para verificar como as relações de gênero se relacionam com os enunciados de políticas públicas dentro do cenário de desenvolvimento rural, impulsionado pelas construções de barragens em Cabo Verde. Nessas pesquisas ficou evidente que as questões de gênero têm um peso importante na definição e ocupação de diferentes espaços nas esferas sociais. O que é fortemente pautado pelas questões das desigualdades sociais. O que traduz na perpetuação da desigualdade social e territorial pelo próprio Estado e sem políticas sociais que possibilite a todos os cabo-verdianos, sobretudo as mais afetadas de viverem “felizes”.
Assim sendo, que alternativa para a desigualdade em Cabo Verde, dada a sua condição arquipelágico e a própria territorialização em cada ilha, cidade e localidades? Num contexto que desde a colonização, até os dias atuais do território cabo-verdiano, praticou-se a postura de “indiferença” em relação às desigualdades sociais, pautada pela ocupação dos espaços.

Bibliografia
MONTEIRO, Eurídice. Entre os Senhores das ilhas e as descontentes – Identidade, Classe e Género na Estruturação do campo político em Cabo Verde. Edições da Uni-CV. Colecção Sociedade Vol.6. 2015.
OLIVEIRA, Francisco. Desigualdade Social: uma trajetória de insistência no Brasil. VII Jornada Internacional Políticas Públicas, Marinhão, Brasil, 2015.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. Tradução de Maria Cecília França. São Paulo: Ática,1993.
RIBEIRO, Djamila. O que é Lugar de fala? Letramento, 2017.

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[1] Longe de se esgotar na essência do termo, o mesmo pode ser utilizado para se referir a mudança de status social.