APRESENTAÇÃO


A educação foi um dos pilares tomado como crucial no processo da dominação imperial-patriarcal-colonial. Convencidos das limitações da dominação física, os colonizadores investiram desde sempre no projeto de “lavagem cerebral” e do “branqueamento” dos sujeitos colonizados enquanto forma de perpetuar a sua dominação simbólica mesmo depois das supostas independências políticas. Neste sentido, o projeto de ensino superior (incluindo nesta esfera a pesquisa científica e tecnológica) ganha relevância. Odair Barros Varela, numa publicação datada de 2004, aponta os mecanismos pós-coloniais de colonização intelectual dos futuros quadros cabo-verdianos nas universidades portuguesas e mais tarde, numa outra publicação, centrada na crítica às ciências sociais produzidas nas ilhas, denuncia a tendência destes estarem, juntamente com o projeto universitário cabo-verdiano, cativas dos formalismos coloniais.

Olhando para o projeto do sistema do ensino superior cabo-verdiano, tendo a sua base lançada em 1979 e revista em 1990, é a partir dos anos de 2000 que se dá a proliferação das instituições universitárias. Em 2016, almejando a internacionalização e o reconhecimento universal dos graus académicos conferidos pelas instituições do ensino superior nas ilhas, aprovou-se a Lei n. 121/VIII que estabelece as bases para a criação de uma Agência Reguladora do Ensino Superior e propôs-se a harmonização do ensino superior em Cabo Verde com o chamado modelo de Bolonha, aproximando “o sistema educativo nacional aos patamares almejados e em experimentação a nível internacional, designadamente na Europa, por forma a, designadamente, assegurar as vantagens da mobilidade e do sistema de créditos para efeito das equivalências de formação e qualificação a nível internacional, de modo mais abrangente possível”.

Esta visão da política educacional, que tem como base orientações da União Europeia e, por conseguinte, não resultarem propriamente de uma reflexão endógena, visa também acoplar a política para a ciência, tecnologia e inovação do país ao programa europeu de ciência, tecnologia e inovação conhecido como Horizonte 20/20. Ou seja, transformar (ou continuar) Cabo Verde numa espécie de colónia científica, tecnológica e epistemológica europeia em África.

Por outro lado, a ênfase colocada nas ciências ditas exatas, ignorando propositadamente as ciências sociais e humanas, relegadas para o segundo plano, visa ir ao encontro de forma acrítica às recomendações do Banco Mundial e do seu projeto de “americanização” do sistema do ensino superior nacional com vista à criação daquilo que tem sido denominado de “capitalismo académico”.

Diante deste cenário, é importante realçar que historicamente as universidades têm sido um local privilegiado de produção e transmissão de conhecimentos, baseado num modelo de racionalidade científica totalitária, visto que nega o carácter racional e científica das outras formas de conhecimentos que não seguem os seus princípios epistemológicos e regras metodológicas.

Atualmente, o sistema de ensino superior, em particular os africanos, que na prática tem funcionado como departamentos universitários euro-norte-americanos em África, têm reproduzido e preservado a colonialidade de poder e de saber. Colonialidade que tem garantido, por um lado, a dominação (política, econômica, militar, cultural e epistemológica) das potências ocidentais e, por outro, a miséria, a balcanização, o genocídio e a deseducação do povo africano que, até recentemente, se encontrava sob domínio colonial.

A insistência em aproximar a política científica cabo-verdiana ao modelo euro-americano, a nosso ver, castra qualquer tentativa de desenvolvimento de uma agenda endógena de conhecimento que garanta um acelerar de descolonização de práticas epistemológicas. Neste sentido, revisitando Jean-Marc Ela, temos a salientar que o que se espera do pesquisador e sujeito africano é a busca de outros horizontes epistemológicos de forma a evitar uma crise de olhar e de construir uma abordagem apropriada à situação atual das sociedades africanas.

A fuga deste desígnio consiste, logo, em recusar a reprodução de discursos institucionais, que normalmente carregam marcas coloniais, libertando o pesquisador dos bloqueios epistemológicos espelhados nas lógicas de consultorias financiadas pelas Agências de Ajuda ao Desenvolvimento, que transformam o continente africano num imenso laboratório de experimentação euro-americanas e cobaias da investigação dos países industrializados.

Assim, mesmo dominadas pelo neoliberalismo e pelo racismo epistêmico, várias têm sido as formas de transgressão forjadas no interior e nos arredores das universidades africanas e/ou frequentados por africanos e seus descendentes. Dentre elas podemos destacar as tentativas/pressões no sentido da descolonização dos curricula ou até mesmo das universidades, na forma como elas ainda se apresentam.

Exemplos disso podem ser observados em várias campanhas populares protagonizadas por jovens na África do Sul, como o caso de #RhodesMustFall# ou numa universidade ganesa, onde se pressionou (e se conseguiu) pela retirada de uma estátua do líder indiano, Mahatma Gandhi, sem esquecer as experiências levadas a cabo em Portugal pela Plataforma Gueto, que através de um espaço informal denominado Universidade, regularmente se promove discussões intelectuais e políticas. No contexto cabo-verdiano, fora do muro universitário formal, espaços de discussão informal de conhecimentos em que se destacam Djumbai Libertariu, Skola d’Afrika e Bantaba Umoja, seguem essas tendências. Trata-se, regra geral, de um conjunto de ações construídas num contexto de lutas contra-coloniais permanentes, sendo elas mesmas sintomáticas de um desejo radical pela mudança da forma como as instituições, particularmente as educacionais, ainda operam, sobretudo no continente africano.

Contudo, não obstante estas tentativas e iniciativas, persistem dúvidas acerca de uma real descolonização das universidades e, consequentemente, da produção e promoção de conhecimentos, de forma a que se valorize os sistemas de conhecimentos africanos com vista a que se possa alcançar definitivamente uma Renascença Africana. Falamos de uma realidade que diferente dos projetos nacionais e regionais forjadas no seio de uma conceção berlinista e balcanizadora dos micro-Estados neocoloniais, assume a missão de uma libertação total de África e a reconquista da dignidade de todos os africanos em todo o mundo.

É neste contexto que surge a ideia da criação do Kuletivu Nhanha Bongolon, na sequência das atividades desenvolvidos pelo Djumbai Libertariu entre os anos de 2014 e 2017, enquanto proposta epistemológica e política pensada e projetada a partir de um conjunto de sujeitos e coletivos africanos, intervenientes em Cabo Verde, que concordam acerca da necessidade de se criar um espaço informal e horizontal de discussão e ação, em que seja possível promover, produzir e compartilhar práticas e saberes emancipatórios.

Contrariamente aos formalismos crónicos, por vezes estéreis, das instituições universitárias neocoloniais a atuar em Cabo Verde, o coletivo ambiciona através de organização de uma universidade, residências e intercâmbios com instituições de ensino e de pesquisa construir possibilidades de diálogo entre os vários campos de conhecimento, de modo a que a realidade sociopolítica local, regional e internacional seja percecionada de forma mais ampla e complexa.

O coletivo tem como objetivo a promoção de um espaço de diálogo e debate sobre assuntos locais, regionais e globais; a produção de conhecimentos e de uma cultura de reflexão, experimentação e auto-consciencialização; a criação de mecanismos de resgate de saberes e práticas potencialmente emancipatórios, desenvolvidos e experimentados tanto em Cabo Verde como no mundo africano global; a construção de estratégias que visam o desenvolvimento de uma efetiva luta intelectual e epistemológica, enquanto ferramenta de resistência contra o processo de (re)colonização; e criação de um programa de pesquisa a partir de uma perspetiva contra-colonial e voltada para a transformação social e política.