sábado, 25 de agosto de 2018

“À Procura da Terra Prometida”: Os Imigrantes no Ensino Superior em Cabo Verde: o Caso dos Bissau-Guineenses na Cidade da Praia


Por Euclides Correia (CeProK)

Cabo Verde sempre teve uma forte tradição de emigração (Carreira, 1983; Góis, 2008; Évora & Grassi, 2007; Carvalho, 2009; Barros, 2008) e a própria literatura cabo-verdiana tem mostrado isso com “a pesca das baleias nas águas do arquipélago”, contudo, só na década de 90 do século passado, passou a ser um país de imigração consequentemente um “país de transição[1]” (Marcelino, 2013) que não deixa de ser um país residencial em especial, para os imigrantes oriundos dos países da CEDEAO. Esses imigrantes vinham por vias diplomáticas-cooperação, eram profissionais qualificados e alguns se encontravam numa hierarquia social muito baixa. Hoje, “sobretudo as mulheres guineenses encontram-se no comércio informal e os homens na construção civil” (Furtado, 2011, p.4). Para a maioria dos imigrantes Cabo Verde não é a “terra prometida”, no entanto, para os Bissau-Guineenses a é, apesar das suas vivências repletas de adversidades.
Após 2008, tem-se deparado nas Instituições do Ensino Superior (IES) em Cabo Verde uma população universitária bastante heterogénea proveniente de várias nacionalidades (Guineense, Senegalesa, Nigeriana, Santomense, Queniana, Moçambicana, Timorense), e demais outras, como portuguesa, latina-americana com menor expressividade. Isso pressupõe ao Estado, as instituições do ensino superior e as instituições que coordenam as políticas de imigração refletirem criticamente sobre as políticas de imigração, no tocante o acesso e permanência desses imigrantes no ensino superior, não só por questões de ordens económicas ou financeiras, mas sobretudo, para uma maior democratização da sociedade» e do «aprofundamento da justiça social (Dias Sobrinho, 2010). A presença dessa população universitária heterogénea, vai questionar a universidade no seu todo, não só os regulamentos internos, políticas académicas, mas também os “curricula” (conteúdos de ensino, programas da disciplina, e de cursos), o implica uma democratização do acesso.
No caso da comunidade Bissau-guineense a maior residente em Cabo Verde, a maioria deles que frequentaram ou que estão a frequentar as IES na cidade da Praia tem idades compreendidas entre os 24 a 45 anos; originários de bairros pobres da Guiné-Bissau (Bairro de Ajuda, Farim, Missirá, enfim); e são descendentes de famílias com fraco capital cultural e económico. Geralmente, os Bissau-guineense chegam a Cabo Verde como trabalhadores migrantes e acabam por estudar e dar continuidade aos seus estudos superiores no país. Neste momento, encontram-se nas residências estudantis de algumas universidades e outros a residirem no bairro da Várzea.
A partir do Modelo dos 4As declarado pelas Nações Unidas (1999), podemos conhecer os problemas e os constrangimentos enfrentados pelos Bissau-guineense no acesso ao ensino superior. Primeiro aspeto, percebe-se que a educação superior em Cabo Verde está disponível, já que há uma massificação das IES no país, ou seja, há uma diversidade de programas de ensino, (aproximadamente 10 IES e escolas profissionais).
Segundo aspeto, compreende-se que o ensino superior não é acessível, uma vez que, os Bissau-guineense têm estado a enfrentar problemas económicas para poderem permanecer e terminar os seus cursos com sucesso; a discriminação o fato de muitas vezes serem apelidados de” mandjacos”, apesar de muitos se recusem de serem chamados assim, mesmo pertencendo a essa etnia. Segundo Freire (2001), não precisamos encapotar as nossas condições existenciais para gozarmos de respeito e atenção. Além disso, sentem-se importunados, pelo facto de seis em seis meses estão submetidos à renovação dos documentos, caso contrário, estão sujeitos à coima, num valor exorbitante. A língua constitui um dos “entraves comunicativos” após chegada a Cabo Verde e mesmo nas IES têm encontrado as diferenças linguísticas (gírias, sotaques) de diferentes blocos regionais (o do sotavento e o do barlavento). Isso, tem-se constatado nas salas de aula quando o professor distancia um pouco da língua oficial, para expressar «os crioulos», o que torna delicado o processo interativo baseado no diálogo. Por outro, o Estado, as IES em Cabo Verde, não dispõem de uma política ativa de imigração, (ex: vagas reservadas aos imigrantes nas IES) apesar de algumas universidades terem desenvolvido ações que promovam o diálogo intercultural, (o caso da Universidade de Cabo Verde, foram promovidas feiras gastronómicas, apresentação de danças tradicionais de estudantes de diferentes nacionalidades, enfim). A Universidade Jean Piaget dispõe de uma residência estudantil que alberga estudantes provenientes de várias regiões e nacionalidades. Entretanto, isto não significa que Cabo Verde dispõe de uma política de ação afirmativa, que no entendimento de Silveira (N.D) refere-se a um conjunto de políticas para salvaguardar os direitos das minorias que estão sendo discriminados e continuam sendo numa determinada sociedade. Os estudantes Bissau-guineense têm enfrentado algumas barreiras para conseguirem um estágio e um emprego, numa conjuntura de competição por recursos escassos (Marcelino, 2013), o emprego, o que torna cada vez mais indolente, a luta por reconhecimento social. A perceção e atitude de “rebeldia camuflada” demonstrada por eles, só serão contornadas mediante o processo da “conscientização” que norteia uma “ação já”, segundo a perspetiva freiriana.
Terceiro aspeto, o cenário das IES no país não é aceitável, devido às críticas severas quanto à qualidade do ensino. Por exemplo, ao nível de contratação e qualificação dos docentes, tornou-se uma rotina em Cabo Verde, o Estado, bem como as IES, encomendarem líderes institucionais “transvestidos de intelectuais”, não só para ocupar cargos administrativos, mas também, ao nível de docência. Por causa disso, hoje se questiona a legitimidade e hegemonia das IES, pelo facto de terem pleiteado em diplomas ao invés de qualificações, desconsiderando assim, a “Produção de Conhecimentos” como uma das áreas que vigora e revigora a própria universidade, quando é projetada e materializada sob uma abordagem Sul/Sul, que não inviabilize e nem inferiorize os conhecimentos do Norte. Tal como acontece em algumas outras realidades africanas (Simala, 2014), em Cabo Verde os membros constituintes da universidade são pessoas externas (recrutadas fora da universidade), e maioria das vezes, são indicadas pelo governo, para supervisionar não só as atividades, assim como as operações em nome do governo.
Tem sido uma prática as IES fazer recrutamentos, “requisitando” os “quadros constituintes da administração pública[2]” e muitas vezes “censurem” o mérito (investigação publicações académicas e docência); não se dá muita relevância aos componentes que compõem o meritismo[3], o que compromete a autonomia universitária. Parafraseando, El Said (2014) a universidade tem o direito de ser independente administrativa e financeiramente em consonância com os seus planos e calendários, mediante uma coordenação integral dos departamentos académicos e os concelhos de administração das faculdades. Quanto ao nível de qualificação docente, constata-se nas nossas IES “docentes alienados” e “docentes alienantes”. Ainda que a maioria tenha um “domínio do campo teórico bastante estruturado” (ainda que concebido hegemonicamente), porém, não predispõem suficientemente do conhecimento da realidade empírica, ou seja, pouco conhecimento em pesquisas no terreno, o que lhes dificultam “fazer uma leitura das dinâmicas sociais”. Entende-se que são “docentes alienantes” já que acabam por alienar os estudantes nesse sentido, e os resultados são visíveis nas monografias, no que concerne à análise interpretativa dos dados recolhidos empiricamente.
Os «Currícula» (conteúdos de ensino, programas de disciplina e do curso) concebidos nas IES não refletem nem sequer os contextos (sociais, económicas, políticas e culturais) da realidade cabo-verdiana e muito menos a realidade migratória, isto por um lado. Por outro, verifica-se um défice na fiscalização do concelho científico das universidades, no tocante aos “currícula”, sem deixar de lado, a desmotivação docente alusiva à bibliografia e os conteúdos a serem abordados. Isso acontece, muitas vezes, dado ao facto de que muitos docentes fizeram as suas formações no exterior e constata-se um “défice de conhecimentos da realidade empírica interna” ou dado à visão linear da realidade social, fruto de uma educação de cariz hegemónica, com rastros de colonialidades, independentemente do sítio onde fizeram as suas formações.
Quarto aspeto, compreende-se que os curricula das IES em Cabo Verde não estão adaptáveis, porque não há uma flexibilidade capaz de corresponder às reais necessidades dos estudantes (Bissau-guineense, especificamente), nos diversos contextos sociais e culturais. Por isso, Varela (2013) considera imprescindível que as IES adoptem uma “Pedagogia” contra-hegemónica alicerçada em diálogo, partilha, inclusão, emancipação e acima de tudo, levem em conta as «diversidades» ancorada numa perspetiva inclusiva, reflexiva e libertária (os currícula deveriam assentar-se nesses moldes). Mesmo que as IES não sejam defensoras dessa pedagogia, contudo a pedagogia oferecida tanto aos nacionais como aos imigrantes (Bissau-guineense) está a contribuir para uma “proliferação dos rebeldes camuflados” destituídos de uma perspetiva inclusiva, reflexiva e libertária.

Versão pdf.


[1] Cabo Verde “ teve que aprender a gerir fluxo contínuo de imigrantes que usam as ilhas como torniquete para entrar em Espanha (através das Canárias), passagem desde os confins da África até ao Sul da Europa. Ver Marcelino, 2013. 
[2] Despacho conjunto do Ministro do Ensino Superior Ciência e Inovação e da Ministra da Educação e do Desporto, publicado na segunda -feira 14 de Dezembro de 2015 no Boletim Oficial nº 61, II Serie, de 14 de dezembro, o ainda deputado é transferido “por interesse e conveniência de serviço” para o Instituto Universitário da Educação. Esta ementa gerou controvérsias principalmente no seio dos académicos, e para os mesmos “trata-se de mais um caso de corrupção política inadmissível”. Disponível em http://jornaliberal.com/noticias/politica/2015/12/16/julio-correia-passa-a-professor-universitario/  acesso, 16 de dezembro de 2015. Ver ainda, o despacho de técnico superior sénior nível III da Administração Pública que foi transferido para o quadro do Instituto Universitário de Educação. Disponível em http://inforpress.publ.cv/agenda/130847-governo-revoga-despacho-de-transferencia-de-romeu-modesto-para-o-instituto-universitario-de-educacao
 acesso 30 de Novembro de 2016. 
[3] Inclui a investigação, as publicações académicas, mas também outros fatores como a docência.