Por Euclides Correia (CeProK)
Cabo
Verde sempre teve uma forte tradição de emigração (Carreira, 1983; Góis, 2008;
Évora & Grassi, 2007; Carvalho, 2009; Barros, 2008) e a própria literatura
cabo-verdiana tem mostrado isso com “a pesca das baleias nas águas do
arquipélago”, contudo, só na década de 90 do século passado, passou a ser um
país de imigração consequentemente um “país de transição[1]” (Marcelino, 2013) que não
deixa de ser um país residencial em especial, para os imigrantes oriundos dos
países da CEDEAO. Esses imigrantes vinham por vias diplomáticas-cooperação,
eram profissionais qualificados e alguns se encontravam numa hierarquia social
muito baixa. Hoje, “sobretudo as mulheres guineenses encontram-se no comércio
informal e os homens na construção civil” (Furtado, 2011, p.4). Para a maioria
dos imigrantes Cabo Verde não é a “terra prometida”, no entanto, para os
Bissau-Guineenses a é, apesar das suas vivências repletas de adversidades.
Após
2008, tem-se deparado nas Instituições do Ensino Superior (IES) em Cabo Verde
uma população universitária bastante heterogénea proveniente de várias
nacionalidades (Guineense, Senegalesa, Nigeriana, Santomense, Queniana,
Moçambicana, Timorense), e demais outras, como portuguesa, latina-americana com
menor expressividade. Isso pressupõe ao Estado, as instituições do ensino
superior e as instituições que coordenam as políticas de imigração refletirem
criticamente sobre as políticas de imigração, no tocante o acesso e permanência
desses imigrantes no ensino superior, não só por questões de ordens económicas
ou financeiras, mas sobretudo, para uma maior democratização da sociedade» e do
«aprofundamento da justiça social (Dias Sobrinho, 2010). A presença dessa
população universitária heterogénea, vai questionar a universidade no seu todo,
não só os regulamentos internos, políticas académicas, mas também os “curricula”
(conteúdos de ensino, programas da disciplina, e de cursos), o implica uma
democratização do acesso.
No
caso da comunidade Bissau-guineense a maior residente em Cabo Verde, a maioria
deles que frequentaram ou que estão a frequentar as IES na cidade da Praia tem
idades compreendidas entre os 24 a 45 anos; originários de bairros pobres da
Guiné-Bissau (Bairro de Ajuda, Farim, Missirá, enfim); e são descendentes de
famílias com fraco capital cultural e económico. Geralmente, os
Bissau-guineense chegam a Cabo Verde como trabalhadores migrantes e acabam por
estudar e dar continuidade aos seus estudos superiores no país. Neste momento,
encontram-se nas residências estudantis de algumas universidades e outros a
residirem no bairro da Várzea.
A
partir do Modelo dos 4As declarado pelas Nações Unidas (1999), podemos conhecer
os problemas e os constrangimentos enfrentados pelos Bissau-guineense no acesso
ao ensino superior. Primeiro aspeto, percebe-se que a educação superior em Cabo
Verde está disponível, já que há uma massificação das IES no país, ou
seja, há uma diversidade de programas de ensino, (aproximadamente 10 IES e
escolas profissionais).
Segundo
aspeto, compreende-se que o ensino superior não é acessível, uma vez
que, os Bissau-guineense têm estado a enfrentar problemas económicas para
poderem permanecer e terminar os seus cursos com sucesso; a discriminação o
fato de muitas vezes serem apelidados de” mandjacos”, apesar de muitos
se recusem de serem chamados assim, mesmo pertencendo a essa etnia. Segundo
Freire (2001), não precisamos encapotar as nossas condições existenciais para
gozarmos de respeito e atenção. Além disso, sentem-se importunados, pelo facto
de seis em seis meses estão submetidos à renovação dos documentos, caso
contrário, estão sujeitos à coima, num valor exorbitante. A língua constitui um
dos “entraves comunicativos” após chegada a Cabo Verde e mesmo nas IES têm
encontrado as diferenças linguísticas (gírias, sotaques) de diferentes blocos
regionais (o do sotavento e o do barlavento). Isso, tem-se constatado nas salas
de aula quando o professor distancia um pouco da língua oficial, para expressar
«os crioulos», o que torna delicado o processo interativo baseado no diálogo.
Por outro, o Estado, as IES em Cabo Verde, não dispõem de uma política ativa de
imigração, (ex: vagas reservadas aos imigrantes nas IES) apesar de algumas
universidades terem desenvolvido ações que promovam o diálogo intercultural, (o
caso da Universidade de Cabo Verde, foram promovidas feiras gastronómicas, apresentação
de danças tradicionais de estudantes de diferentes nacionalidades, enfim). A
Universidade Jean Piaget dispõe de uma residência estudantil que alberga estudantes
provenientes de várias regiões e nacionalidades. Entretanto, isto não significa
que Cabo Verde dispõe de uma política de ação afirmativa, que no entendimento
de Silveira (N.D) refere-se a um conjunto de políticas para salvaguardar os
direitos das minorias que estão sendo discriminados e continuam sendo numa
determinada sociedade. Os estudantes Bissau-guineense têm enfrentado algumas
barreiras para conseguirem um estágio e um emprego, numa conjuntura de
competição por recursos escassos (Marcelino, 2013), o emprego, o que torna cada
vez mais indolente, a luta por reconhecimento social. A perceção e atitude de
“rebeldia camuflada” demonstrada por eles, só serão contornadas mediante o
processo da “conscientização” que norteia uma “ação já”, segundo a perspetiva
freiriana.
Terceiro
aspeto, o cenário das IES no país não é aceitável, devido às críticas
severas quanto à qualidade do ensino. Por exemplo, ao nível de contratação e
qualificação dos docentes, tornou-se uma rotina em Cabo Verde, o Estado, bem
como as IES, encomendarem líderes institucionais “transvestidos de
intelectuais”, não só para ocupar cargos administrativos, mas também, ao nível
de docência. Por causa disso, hoje se questiona a legitimidade e hegemonia das
IES, pelo facto de terem pleiteado em diplomas ao invés de qualificações,
desconsiderando assim, a “Produção de Conhecimentos” como uma das áreas que
vigora e revigora a própria universidade, quando é projetada e materializada
sob uma abordagem Sul/Sul, que não inviabilize e nem inferiorize os
conhecimentos do Norte. Tal como acontece em algumas outras realidades
africanas (Simala, 2014), em Cabo Verde os membros constituintes da
universidade são pessoas externas (recrutadas fora da universidade), e maioria
das vezes, são indicadas pelo governo, para supervisionar não só as atividades,
assim como as operações em nome do governo.
Tem
sido uma prática as IES fazer recrutamentos, “requisitando” os “quadros
constituintes da administração pública[2]” e muitas vezes “censurem”
o mérito (investigação publicações académicas e docência); não se dá muita
relevância aos componentes que compõem o meritismo[3], o que compromete a
autonomia universitária. Parafraseando, El Said (2014) a universidade tem o
direito de ser independente administrativa e financeiramente em consonância com
os seus planos e calendários, mediante uma coordenação integral dos
departamentos académicos e os concelhos de administração das faculdades. Quanto
ao nível de qualificação docente, constata-se nas nossas IES “docentes alienados”
e “docentes alienantes”. Ainda que a maioria tenha um “domínio do campo teórico
bastante estruturado” (ainda que concebido hegemonicamente), porém, não
predispõem suficientemente do conhecimento da realidade empírica, ou seja,
pouco conhecimento em pesquisas no terreno, o que lhes dificultam “fazer uma
leitura das dinâmicas sociais”. Entende-se que são “docentes alienantes” já que
acabam por alienar os estudantes nesse sentido, e os resultados são visíveis
nas monografias, no que concerne à análise interpretativa dos dados recolhidos
empiricamente.
Os
«Currícula» (conteúdos de ensino, programas de disciplina e do curso)
concebidos nas IES não refletem nem sequer os contextos (sociais, económicas,
políticas e culturais) da realidade cabo-verdiana e muito menos a realidade
migratória, isto por um lado. Por outro, verifica-se um défice na fiscalização
do concelho científico das universidades, no tocante aos “currícula”, sem
deixar de lado, a desmotivação docente alusiva à bibliografia e os conteúdos a serem
abordados. Isso acontece, muitas vezes, dado ao facto de que muitos docentes
fizeram as suas formações no exterior e constata-se um “défice de conhecimentos
da realidade empírica interna” ou dado à visão linear da realidade social,
fruto de uma educação de cariz hegemónica, com rastros de colonialidades,
independentemente do sítio onde fizeram as suas formações.
Quarto
aspeto, compreende-se que os curricula das IES em Cabo Verde não estão adaptáveis,
porque não há uma flexibilidade capaz de corresponder às reais necessidades dos
estudantes (Bissau-guineense, especificamente), nos diversos contextos sociais
e culturais. Por isso, Varela (2013) considera imprescindível que as IES
adoptem uma “Pedagogia” contra-hegemónica alicerçada em diálogo, partilha, inclusão,
emancipação e acima de tudo, levem em conta as «diversidades» ancorada numa
perspetiva inclusiva, reflexiva e libertária (os currícula deveriam assentar-se
nesses moldes). Mesmo que as IES não sejam defensoras dessa pedagogia, contudo
a pedagogia oferecida tanto aos nacionais como aos imigrantes (Bissau-guineense)
está a contribuir para uma “proliferação dos rebeldes camuflados” destituídos
de uma perspetiva inclusiva, reflexiva e libertária.
Versão pdf.
[1] Cabo Verde “ teve
que aprender a gerir fluxo contínuo de imigrantes que usam as ilhas como
torniquete para entrar em Espanha (através das Canárias), passagem desde os
confins da África até ao Sul da Europa. Ver Marcelino, 2013.
[2] Despacho conjunto
do Ministro do Ensino Superior Ciência e Inovação e da Ministra da Educação e
do Desporto, publicado na segunda -feira 14 de Dezembro de 2015 no Boletim
Oficial nº 61, II Serie, de 14 de dezembro, o ainda deputado é transferido “por
interesse e conveniência de serviço” para o Instituto Universitário da
Educação. Esta ementa gerou controvérsias principalmente no seio dos
académicos, e para os mesmos “trata-se de mais um caso de corrupção política
inadmissível”. Disponível em http://jornaliberal.com/noticias/politica/2015/12/16/julio-correia-passa-a-professor-universitario/
acesso, 16 de dezembro de 2015. Ver
ainda, o despacho de técnico superior sénior nível III da Administração Pública
que foi transferido para o quadro do Instituto Universitário de Educação.
Disponível em http://inforpress.publ.cv/agenda/130847-governo-revoga-despacho-de-transferencia-de-romeu-modesto-para-o-instituto-universitario-de-educacao
acesso 30 de Novembro de 2016.
[3] Inclui a
investigação, as publicações académicas, mas também outros fatores como a
docência.