terça-feira, 28 de agosto de 2018

Desigualdade em Cabo Verde: um enfoque social e territorial

Por Evandra Moreira

Quando recebi o convite para o intercâmbio intitulado “Desigualdade: perspetiva local e global”, não tive muitas dificuldades para decidir sobre o que falar. Reconhecendo que seria um exercício desafiador, porém o espaço de diálogo já é um caminho para pensarmos sobre as diferentes questões das desigualdades desde as econômicas, classe, gênero, raça, idade que estão diretamente ligadas à relação de poder estabelecida desde os princípios dos tempos e, comummente, é conhecido como “a lei dos mais fortes”. Para situar a minha fala, tendo em conta as diferentes desigualdades existentes em Cabo Verde, optei por fazer uma reflexão sobre a desigualdade em Cabo Verde a partir do enfoque social e territorial. Com o objetivo de refletir como a organização do espaço reflete e perpetua as desigualdades sociais em Cabo Verde.
Para falar das desigualdades, acredito que o lugar de fala (RIBEIRO, 2017) tem um peso de suma importância. Por isso passo a fazer a minha breve apresentação: Sou Evandra, filha de pai agricultor e mãe “doméstica”. Nasci numa família que não tem um nome de peso, em Ribeirão de Cal – uma pequena localidade do interior do concelho de São Domingos – atual cidade com o mesmo nome. Uma zona sem eletricidade na altura em que caminhava vários quilómetros, às vezes de madrugada, para buscar água para o consumo e para os animais. Caminhava quilómetros para chegar à escola, que era numa outra localidade – Mendes Faleiro. O mesmo acontecia em situação de doença, lazer e religioso. Uma localidade com alta taxa de desemprego, em que as famílias dependiam e ainda dependem da criação de gado e agricultura, à semelhança da grande maioria da população cabo-verdiana, sobretudo as do mundo rural.
Dada a constante seca, que historicamente sempre se fez presente em Cabo Verde, que gerava falta de alimentos que garantissem a sobrevivência, os meus pais sentiram-se obrigados a buscar alternativas fora de Ribeirão de Cal. A cidade da Praia foi a nossa única opção. Em 2003, mudei para a periferia da cidade da Praia (Bela Vista) onde tive mais facilidade para ter acesso a diferentes serviços, sobretudo, a educação. Caminhava menos de 10 minutos para chegar a escola.
Nesta senda, o lugar de fala está a ser vista aqui enquanto mecanismo que surgiu como contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos privilegiados em espaços de debate público (RIBEIRO, 2017). O lugar de fala defende que há diferentes “efeitos de verdade” a depender de quem anuncia o discurso, sobretudo nas populações alvos de políticas públicas, vista enquanto setor menos audíveis ao poder público (mulheres em situação de violência, mulheres do mundo rural, conjugalidades LGBT e outros gêneros). Trouxe à minha realidade para mostrar como é que a desigualdade á pautada pelo território.
A ocupação do espaço e as desigualdades em Cabo Verde são questões históricas, que veio com as “histórias do povoamento”, sobretudo no mundo rural, bem como entre as ilhas. A formação histórica da sociedade cabo-verdiana e a sua caraterização a nível do continente africano denuncia uma série de questões para pensarmos a desigualdade em Cabo Verde. A estruturação da sociedade cabo-verdiana foi construída com base no fator étnico/racial, a partir de dois grupos que definitivamente se fixaram em primeiro lugar na ilha de Santiago - Europeus livres e africanos escravizados. Com um diferencial, o “Senhor-Pai-Europa e Escrava-Mãe-África” (MONTEIRO, 2015, p.92), como é realçado pela Eurídice Monteiro retratando o colonialismo em Cabo Verde e a sua “retórica da excecionalidade cabo-verdiana (MONTEIRO, 2015, p.93).
No cenário cabo-verdiano prevalecia as desigualdades de classe, gênero, raça e territorial. A ocupação do espaço nas ilhas, sobretudo na ilha de Santiago, evidencia essas desigualdades. Assim sendo, o território pode ser uma via de conhecimento da particularidade das práticas sociais.
Estou a pensar o território a partir das relações de poder entre os indivíduos e instituições (RAFFESTIN, 1993). Os diferentes atores que se apropriam do espaço e vão formar os territórios, imprimindo nestas suas caraterísticas relacionais de acordo com os seus objetivos, que podem influenciar a ordem económica, politica e cultura.
O bairro de Plateau e o bairro de Ribeirão de Cal são caso, do qual teríamos elementos para pensar, sobretudo nos atores envolvidos e as relações de poder que são estabelecidos com as diferentes instituições públicas.
Assim sendo, o território torna-se um importante instrumento de leitura das dinâmicas existentes no espaço. E entendendo a dinâmica da territorialização de Cabo Verde, poderemos ter pistas para refletir sobre a desigualdade social em Cabo Verde.
A desigualdade social a nível prático e conceitual, não é novo no cenário cabo-verdiano, porém não é colocado em pauta enquanto categoria analítica. Uma das máximas famosas no cenário cabo-verdiano - “Djan Branku Dja[1]”, traduz a existência das desigualdades, sobretudo sociais em Cabo Verde, para além da desigualdade racial, de renda e territorial. No período colonial em Cabo Verde, foi imposto o modelo econômico escravocrata, em que o escravo era a principal mão-de-obra, do qual não tinha participação na renda. Os demais trabalhadores, sobretudo mulheres, pobres não recebiam terra para trabalhar. Trabalho este em que o valor e o tempo do trabalho assalariado nunca foi regulamentados, no qual dependia da boa vontade (ou não) dos morgados.
No Cabo Verde atual, 43 anos após independência, em que os dados nacionais apontam para o maior índice de pobreza no mundo rural, sobretudo nas famílias chefiada por mulheres. Uma taxa de desemprego juvenil (14-24 anos) que continua a crescer, tendo passado de 34,6% em 2013 para 50,8% em 2014, representando um aumento de 16,2 da população (www.ine.cv, consultado em 25 de setembro de 2017). Agravado com a falta da chuva de 2017, a fome e a pobreza trouxeram a tona a questão da desigualdade social com maior ênfase ainda em Cabo Verde. Discursos estes que é evidenciado, sobretudo, quando é colocado em pauta a questão da regionalização, reforçando a existência das desigualdades entre as ilhas; as questões de saúde, quando se fala dos transportes entre as ilhas e nas evacuações de doentes e na participação das mulheres na política.
Segundo Oliveira (2015, p.2):
A busca pela superação da desigualdade social na sociedade moderna vem sendo abordada sob duas perspectivas: a ideia de igualdade absoluta (igualdade total na situação socioeconômica dos indivíduos) e igualdade realtiva (igualdade de oportunidades a todas as pessoas da sociedade). A absoluta é irrealizável, uma utopia, devido à natureza de insatisfação das pessoas em acumular bens, dinheiro, poder, riqueza e, por isto mesmo, uma permanente disputa entre indivíduos, expressada pela máxima medida de encher nunca enche. A igualdade relativa torna-se possível à medida que os grupos sociais menos favorecidos conquistam mais direitos; e estes se traduzem em políticas públicas de distribuição de renda, gerando equidade social (DIAS, 2001; GIDDENS, 2005).
O autor ainda fala da equidade social (OLIVEIRA, 2015, p.3):
vista como a justa distribuição de renda (riqueza produzida pelo trabalho) na sociedade, compreendida como o direito de as pessoas participarem não “só da atividade política e econômica, mas também o direito de contar com os meios de subsistência (adequada segundo suas necessidades) e com o acesso a um conjunto de serviços públicos que permitam manter um nível adequado de vida”
Longe de esgotar esta reflexão, realço que falar da desigualdade social, refere sempre à situação de carência: que vai desde a educação de qualidade; falta de oportunidades; poucas oportunidades de emprego; ausência de estímulos para o consumo de bens culturais como ir a cinema, teatro e museus e até mesmo de conhecer a própria história do continente africano. Dentro de uma conjuntura em que privilegia a educação formal e com alguma resistência para outras possibilidades de ensino. 
Em Cabo Verde não tem como passar por cima das questões das desigualdades, sem falar das questões de gênero. Na história de Cabo Verde o homem sempre teve papel de destaque, reconhecido. A partir da minha pesquisa de graduação em que retratei as desigualdades entre homens e mulheres na prática da agricultura nas imediações na Barragem de Poilão, trouxe resultados que é um pouco o reflexo do cenário de todo o país. No qual revela que os trabalhos diários e os cuidados – que mantém a união e bom desenvolvimento do agregado familiar são da responsabilidade das mulheres, no qual não é valorizado e o próprio estado não cria condições que reconheça este trabalho; - Salário – na agricultura no mesmo trabalho, a mesma carga horária, com remuneração diferenciada entre homens e mulheres no final do dia. - Herança – o acesso as terras tem acesso limitado para as mulheres;
E mais tarde, trabalhei com as politicas públicas que relacionam com o sector da agricultura, para verificar como as relações de gênero se relacionam com os enunciados de políticas públicas dentro do cenário de desenvolvimento rural, impulsionado pelas construções de barragens em Cabo Verde. Nessas pesquisas ficou evidente que as questões de gênero têm um peso importante na definição e ocupação de diferentes espaços nas esferas sociais. O que é fortemente pautado pelas questões das desigualdades sociais. O que traduz na perpetuação da desigualdade social e territorial pelo próprio Estado e sem políticas sociais que possibilite a todos os cabo-verdianos, sobretudo as mais afetadas de viverem “felizes”.
Assim sendo, que alternativa para a desigualdade em Cabo Verde, dada a sua condição arquipelágico e a própria territorialização em cada ilha, cidade e localidades? Num contexto que desde a colonização, até os dias atuais do território cabo-verdiano, praticou-se a postura de “indiferença” em relação às desigualdades sociais, pautada pela ocupação dos espaços.

Bibliografia
MONTEIRO, Eurídice. Entre os Senhores das ilhas e as descontentes – Identidade, Classe e Género na Estruturação do campo político em Cabo Verde. Edições da Uni-CV. Colecção Sociedade Vol.6. 2015.
OLIVEIRA, Francisco. Desigualdade Social: uma trajetória de insistência no Brasil. VII Jornada Internacional Políticas Públicas, Marinhão, Brasil, 2015.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. Tradução de Maria Cecília França. São Paulo: Ática,1993.
RIBEIRO, Djamila. O que é Lugar de fala? Letramento, 2017.

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[1] Longe de se esgotar na essência do termo, o mesmo pode ser utilizado para se referir a mudança de status social.

sábado, 25 de agosto de 2018

“À Procura da Terra Prometida”: Os Imigrantes no Ensino Superior em Cabo Verde: o Caso dos Bissau-Guineenses na Cidade da Praia


Por Euclides Correia (CeProK)

Cabo Verde sempre teve uma forte tradição de emigração (Carreira, 1983; Góis, 2008; Évora & Grassi, 2007; Carvalho, 2009; Barros, 2008) e a própria literatura cabo-verdiana tem mostrado isso com “a pesca das baleias nas águas do arquipélago”, contudo, só na década de 90 do século passado, passou a ser um país de imigração consequentemente um “país de transição[1]” (Marcelino, 2013) que não deixa de ser um país residencial em especial, para os imigrantes oriundos dos países da CEDEAO. Esses imigrantes vinham por vias diplomáticas-cooperação, eram profissionais qualificados e alguns se encontravam numa hierarquia social muito baixa. Hoje, “sobretudo as mulheres guineenses encontram-se no comércio informal e os homens na construção civil” (Furtado, 2011, p.4). Para a maioria dos imigrantes Cabo Verde não é a “terra prometida”, no entanto, para os Bissau-Guineenses a é, apesar das suas vivências repletas de adversidades.
Após 2008, tem-se deparado nas Instituições do Ensino Superior (IES) em Cabo Verde uma população universitária bastante heterogénea proveniente de várias nacionalidades (Guineense, Senegalesa, Nigeriana, Santomense, Queniana, Moçambicana, Timorense), e demais outras, como portuguesa, latina-americana com menor expressividade. Isso pressupõe ao Estado, as instituições do ensino superior e as instituições que coordenam as políticas de imigração refletirem criticamente sobre as políticas de imigração, no tocante o acesso e permanência desses imigrantes no ensino superior, não só por questões de ordens económicas ou financeiras, mas sobretudo, para uma maior democratização da sociedade» e do «aprofundamento da justiça social (Dias Sobrinho, 2010). A presença dessa população universitária heterogénea, vai questionar a universidade no seu todo, não só os regulamentos internos, políticas académicas, mas também os “curricula” (conteúdos de ensino, programas da disciplina, e de cursos), o implica uma democratização do acesso.
No caso da comunidade Bissau-guineense a maior residente em Cabo Verde, a maioria deles que frequentaram ou que estão a frequentar as IES na cidade da Praia tem idades compreendidas entre os 24 a 45 anos; originários de bairros pobres da Guiné-Bissau (Bairro de Ajuda, Farim, Missirá, enfim); e são descendentes de famílias com fraco capital cultural e económico. Geralmente, os Bissau-guineense chegam a Cabo Verde como trabalhadores migrantes e acabam por estudar e dar continuidade aos seus estudos superiores no país. Neste momento, encontram-se nas residências estudantis de algumas universidades e outros a residirem no bairro da Várzea.
A partir do Modelo dos 4As declarado pelas Nações Unidas (1999), podemos conhecer os problemas e os constrangimentos enfrentados pelos Bissau-guineense no acesso ao ensino superior. Primeiro aspeto, percebe-se que a educação superior em Cabo Verde está disponível, já que há uma massificação das IES no país, ou seja, há uma diversidade de programas de ensino, (aproximadamente 10 IES e escolas profissionais).
Segundo aspeto, compreende-se que o ensino superior não é acessível, uma vez que, os Bissau-guineense têm estado a enfrentar problemas económicas para poderem permanecer e terminar os seus cursos com sucesso; a discriminação o fato de muitas vezes serem apelidados de” mandjacos”, apesar de muitos se recusem de serem chamados assim, mesmo pertencendo a essa etnia. Segundo Freire (2001), não precisamos encapotar as nossas condições existenciais para gozarmos de respeito e atenção. Além disso, sentem-se importunados, pelo facto de seis em seis meses estão submetidos à renovação dos documentos, caso contrário, estão sujeitos à coima, num valor exorbitante. A língua constitui um dos “entraves comunicativos” após chegada a Cabo Verde e mesmo nas IES têm encontrado as diferenças linguísticas (gírias, sotaques) de diferentes blocos regionais (o do sotavento e o do barlavento). Isso, tem-se constatado nas salas de aula quando o professor distancia um pouco da língua oficial, para expressar «os crioulos», o que torna delicado o processo interativo baseado no diálogo. Por outro, o Estado, as IES em Cabo Verde, não dispõem de uma política ativa de imigração, (ex: vagas reservadas aos imigrantes nas IES) apesar de algumas universidades terem desenvolvido ações que promovam o diálogo intercultural, (o caso da Universidade de Cabo Verde, foram promovidas feiras gastronómicas, apresentação de danças tradicionais de estudantes de diferentes nacionalidades, enfim). A Universidade Jean Piaget dispõe de uma residência estudantil que alberga estudantes provenientes de várias regiões e nacionalidades. Entretanto, isto não significa que Cabo Verde dispõe de uma política de ação afirmativa, que no entendimento de Silveira (N.D) refere-se a um conjunto de políticas para salvaguardar os direitos das minorias que estão sendo discriminados e continuam sendo numa determinada sociedade. Os estudantes Bissau-guineense têm enfrentado algumas barreiras para conseguirem um estágio e um emprego, numa conjuntura de competição por recursos escassos (Marcelino, 2013), o emprego, o que torna cada vez mais indolente, a luta por reconhecimento social. A perceção e atitude de “rebeldia camuflada” demonstrada por eles, só serão contornadas mediante o processo da “conscientização” que norteia uma “ação já”, segundo a perspetiva freiriana.
Terceiro aspeto, o cenário das IES no país não é aceitável, devido às críticas severas quanto à qualidade do ensino. Por exemplo, ao nível de contratação e qualificação dos docentes, tornou-se uma rotina em Cabo Verde, o Estado, bem como as IES, encomendarem líderes institucionais “transvestidos de intelectuais”, não só para ocupar cargos administrativos, mas também, ao nível de docência. Por causa disso, hoje se questiona a legitimidade e hegemonia das IES, pelo facto de terem pleiteado em diplomas ao invés de qualificações, desconsiderando assim, a “Produção de Conhecimentos” como uma das áreas que vigora e revigora a própria universidade, quando é projetada e materializada sob uma abordagem Sul/Sul, que não inviabilize e nem inferiorize os conhecimentos do Norte. Tal como acontece em algumas outras realidades africanas (Simala, 2014), em Cabo Verde os membros constituintes da universidade são pessoas externas (recrutadas fora da universidade), e maioria das vezes, são indicadas pelo governo, para supervisionar não só as atividades, assim como as operações em nome do governo.
Tem sido uma prática as IES fazer recrutamentos, “requisitando” os “quadros constituintes da administração pública[2]” e muitas vezes “censurem” o mérito (investigação publicações académicas e docência); não se dá muita relevância aos componentes que compõem o meritismo[3], o que compromete a autonomia universitária. Parafraseando, El Said (2014) a universidade tem o direito de ser independente administrativa e financeiramente em consonância com os seus planos e calendários, mediante uma coordenação integral dos departamentos académicos e os concelhos de administração das faculdades. Quanto ao nível de qualificação docente, constata-se nas nossas IES “docentes alienados” e “docentes alienantes”. Ainda que a maioria tenha um “domínio do campo teórico bastante estruturado” (ainda que concebido hegemonicamente), porém, não predispõem suficientemente do conhecimento da realidade empírica, ou seja, pouco conhecimento em pesquisas no terreno, o que lhes dificultam “fazer uma leitura das dinâmicas sociais”. Entende-se que são “docentes alienantes” já que acabam por alienar os estudantes nesse sentido, e os resultados são visíveis nas monografias, no que concerne à análise interpretativa dos dados recolhidos empiricamente.
Os «Currícula» (conteúdos de ensino, programas de disciplina e do curso) concebidos nas IES não refletem nem sequer os contextos (sociais, económicas, políticas e culturais) da realidade cabo-verdiana e muito menos a realidade migratória, isto por um lado. Por outro, verifica-se um défice na fiscalização do concelho científico das universidades, no tocante aos “currícula”, sem deixar de lado, a desmotivação docente alusiva à bibliografia e os conteúdos a serem abordados. Isso acontece, muitas vezes, dado ao facto de que muitos docentes fizeram as suas formações no exterior e constata-se um “défice de conhecimentos da realidade empírica interna” ou dado à visão linear da realidade social, fruto de uma educação de cariz hegemónica, com rastros de colonialidades, independentemente do sítio onde fizeram as suas formações.
Quarto aspeto, compreende-se que os curricula das IES em Cabo Verde não estão adaptáveis, porque não há uma flexibilidade capaz de corresponder às reais necessidades dos estudantes (Bissau-guineense, especificamente), nos diversos contextos sociais e culturais. Por isso, Varela (2013) considera imprescindível que as IES adoptem uma “Pedagogia” contra-hegemónica alicerçada em diálogo, partilha, inclusão, emancipação e acima de tudo, levem em conta as «diversidades» ancorada numa perspetiva inclusiva, reflexiva e libertária (os currícula deveriam assentar-se nesses moldes). Mesmo que as IES não sejam defensoras dessa pedagogia, contudo a pedagogia oferecida tanto aos nacionais como aos imigrantes (Bissau-guineense) está a contribuir para uma “proliferação dos rebeldes camuflados” destituídos de uma perspetiva inclusiva, reflexiva e libertária.

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[1] Cabo Verde “ teve que aprender a gerir fluxo contínuo de imigrantes que usam as ilhas como torniquete para entrar em Espanha (através das Canárias), passagem desde os confins da África até ao Sul da Europa. Ver Marcelino, 2013. 
[2] Despacho conjunto do Ministro do Ensino Superior Ciência e Inovação e da Ministra da Educação e do Desporto, publicado na segunda -feira 14 de Dezembro de 2015 no Boletim Oficial nº 61, II Serie, de 14 de dezembro, o ainda deputado é transferido “por interesse e conveniência de serviço” para o Instituto Universitário da Educação. Esta ementa gerou controvérsias principalmente no seio dos académicos, e para os mesmos “trata-se de mais um caso de corrupção política inadmissível”. Disponível em http://jornaliberal.com/noticias/politica/2015/12/16/julio-correia-passa-a-professor-universitario/  acesso, 16 de dezembro de 2015. Ver ainda, o despacho de técnico superior sénior nível III da Administração Pública que foi transferido para o quadro do Instituto Universitário de Educação. Disponível em http://inforpress.publ.cv/agenda/130847-governo-revoga-despacho-de-transferencia-de-romeu-modesto-para-o-instituto-universitario-de-educacao
 acesso 30 de Novembro de 2016. 
[3] Inclui a investigação, as publicações académicas, mas também outros fatores como a docência. 

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Programa intercâmbio Universidadi Nhanha Bongolon | University of Rhode Island

Depois da primeira edição, segue-se o intercâmbio com a University of Rhode Island dos Estados Unidos, sob o tema desigualdade social e suas perspetivas local e global. Objetivos do intercâmbio aqui.

19 agosto 2018, Centro de Intervenção Comunitário, Fonton, Praia

Programa

10:00 - Intruduson 
10:30 - Desigualdade em Cabo Verde: um enfoque social e territorial - Evandra Moreira
10:45 - Inequality and freedon - Gabriel Figueroa (URI)
12:00 - Aprizentason prujetu CIC Fonton
12:30 - Almosu
14:00 - "À procura da terra prometida". Os imigrantes no Ensino Superior em Cabo Verde: o caso dos Bissau-guineenses - Euclides Fernandes Correia (CeProK)
14:15 - The color of wealth in Boston - Suzane Stringer (URI)
15:30 - Exibição do filme Inequality For All (2013) de Jacon Kornbluth

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Universidadi Nhanha Bongolon (I). Memorando


Por Yuri Queita

Nos dias 9 e 10 de junho último, realizou-se no Centro Dia do Castelão, em parceria com a Associação Comunitária de Castelão, a primeira edição da Universidadi Nhanha Bongolon, um espaço informal e horizontal de discussão criado com vista a alcançar a renascença africana por via de luta libertária e pan-africana. Apresentada como uma proposta epistemológica e política engajada, o espaço espera funcionar como uma plataforma de convergência de saberes e conhecimentos locais e globais. Nesta lógica, a primeira edição da Universidade foi organizada à volta de cinco rodas de conversa.
A primeira, sobre os desafios de se pensar pelas nossas próprias cabeças no contexto de luta pan-africana e a necessidade da adoção de uma epistemologia militante, introduzida por Alexssandro Robalo, que começou por elucidar sobre o processo de controlo intelectual e mental perpetuado pelo sistema colonial e esclavagista europeu, salientando que a desvalorização deste fato poderá ser um fator condicionador de luta emancipatória africana. No seu entender, esta falta de consciência contribuiu para que a produção de conhecimento endógena ficasse subalternizada aos interesses extrativistas europeus, conhecimento esse definido por critérios e valores de índole ocidental. Esta prática tem como finalidade limitar as opções metodológicas dos produtores endógenos de conhecimento a uma hierarquia epistemológica, retirando da esfera de conhecimento os produtos produzidos no continente africano, latino-americano, asiático ou indígena de forma geral.
De forma a contornar essa situação, figuras como Amílcar Cabral e Cheikh Anta Diop são evocadas como referências epistemológicas a continuar. Denuncia as estratégias europeias em abafar a influência dos produtores de epistemologias africanas através da limitação da sua atuação, inclusive nos seus países de origem em conluio com os intelectuais assimilados. Nesta mesma linha, a revolução haitiana é apresentada como um modelo revolucionário que conseguiu sem uma liderança personalizada atingir os objetivos propostos, embora normalmente secundarizado, propositadamente, em relação à revolução francesa, com vista o seu esquecimento e desconhecimento. 
Por fim, enaltece a ideia de impossibilidade de uma consciencialização militante e revolucionária no âmbito da unidade africana sem uma reflexão profunda da nossa realidade. Neste aspeto, considera que iniciativas como a escola piloto do PAIGC, os estudos sobre África desenvolvidos por alguns coletivos cabo-verdianos e a própria Universidadi Nhanha Bongolon podem ser entendidas como exemplos de abordagens epistemológicas alternativas e de diálogo horizontal no processo de produção e difusão de conhecimentos africanos.
A segunda roda de conversa foi introduzida por Abel Djassi Amado que falou sobre as relações diplomáticas securitizadas e militarizadas entre os Estados Unidos e Cabo Verde a partir de quatro eixos analíticos: i) Cabo Verde no imaginário geopolítico ocidental; ii) conceptualização dos termos securitização e militarização; iii) relação histórica entre os Estados Unidos e Cabo Verde; iv) as relações diplomáticas entre os dois Estados na sua vertente militarista e securitária.
Começa por enaltecer a valorização do posicionamento geográfico estratégico de Cabo Verde, que culminou na indicação de Cabo Verde como um Estado Âncora para os Estados Unidos. Portanto, isto faz com que apesar do papel estratégico das embaixadas dos Estados Unidos, foi o AFRICOM a se titularizar como agente institucional de referência nas relações dos Estados Unidos com o continente africano de modo geral e de Cabo Verde em particular. Contudo, afirma que ao longo da história recente foram experimentados diferentes ciclos nas relações dos Estados Unidos com o continente africano, dependendo do contexto económico e político mundial no geral e africano em particular, bem como conforme as sensibilidades das diferentes lideranças norte-americanas na pós-segunda guerra mundial. Com Cabo Verde em particular, as relações dos Estados Unidos no período pós-independência foram marcadas por fatores humanitários de desenvolvimento, com a USAID a desempenhar um papel de destaque nesse processo. A partir dos anos de 1990, deu-se a entrada no país os Corpos da Paz, num processo de substituição de agências estatais pelas organizações de sociedade civil como protagonistas nas relações exteriores.
Defende que após o 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos voltaram ao projeto de securitização e militarização diplomático à escala global. No que concerne às relações dos Estados Unidos com o continente africano em geral e Cabo Verde no particular, este contexto fez emergir uma dupla abordagem: i) securitária/militarista fortemente conectada com as operações da AFRICOM (hard-power); ii) desenvolvimentista e preventiva ligada aos projetos implementados no quadro do MCC/MCA, conectada aos compromissos com os princípios de democracia e de governação segundo os critérios definidos por Washington (soft-power).
Por fim, observa que à semelhança de outros Estados africanos, Cabo Verde candidata-se a assumir a sede da AFRICOM, intenção essa que responsabiliza politicamente o Governo de Cabo Verde no processo de afirmação crescente dos Estados Unidos no continente africano, como mostram a centralidade da AFRICOM no relacionamento atual entre os dois países, comprovado no número de exercícios e financiamentos de organização e edificação do Centro de Segurança Marítima e da aprovação do acordo SOFA.
A terceira conversa girou à volta da resposta da questão colocada por Kwesi Ta Fari a Astrid Umaru e Lúcia Cardoso se é possível uma alimentação vegetariana e uma cosmética natural em Cabo Verde.
Como introdução da conversa, Kwesi Ta Fari aborda o impacto do colonialismo na alimentação e nas gastronomias africanas, consubstanciado numa nova dieta entendida como prejudicial, no quadro de uma conspiração global e racista para o enfraquecimento das populações africanas (Nutricídio). Suportado por dados estatísticos, aponta que anualmente morrem cerca de 600 mil africanos, vítimas de doenças de forro nefrológica (800 mortes anual em Cabo Verde), o que mostra que estamos perante a formulação de um sistema de saúde que promove a doença por interesse da indústria farmacêutica.
Destaca o impacto do marketing por detrás da indústria alimentar e cosmética ocidentais nesse processo e avança o exemplo do mercado de Sucupira onde existem cerca de 80 barracas a comercializar cremes e sabonetes de embranquecimento da pele (despigmentadores). Como exemplo histórico de resistência alimentar aponta as práticas das estruturas sociais tradicionais africanas, em que destaca as tabankas, os quilombos e as atuais iniciativas de entidades pan-africanistas. 
Astrid Umaru, por sua vez, exalta a faceta cultural da alimentação tradicional africana e a sua necessária valorização. Reforça a ideia do papel da publicidade e do marketing ocidental no processo da criação da necessidade de consumo e relaciona o estilo de vida alimentar atual com as enfermidades mencionada por Ta Fari. Nesse aspeto, salienta o impacto do uso de agrotóxicos por parte dos agricultores, situação só contornada através de uma produção alimentar biológica e por um maior controlo no abate de animais e comercialização das respetivas carnes em todos os municípios do país.
Por fim, fala da necessidade de uma alimentação vegana ou baseada em produtos vegetais como instrumento de construção de um sujeito africano físico e mentalmente saudável.  
Lúcia Cardoso começa com um apelo à necessidade de ligar o consumo alimentar sustentável com a produção familiar ou a compra direta dos produtos nos produtores, sua prática no âmbito da produção da marca cosmética made in Cabo Verde denominada Badia, da qual falou sobre a metodologia de confeção caseira implementada, que integra um projeto de empoderamento de um grupo de mulheres da ilha do Maio na apanha do sal para a confeção dos produtos.
No segundo dia do encontro, realizado no Centro Multiuso de Castelão, realizou-se duas rodas de conversa, sendo a primeira introduzida por Flávio Almada que abordou as outras formas de organização política a partir da experiência da Plataforma Gueto no contexto português, começando por falar sobre a necessidade de haver uma maior conetividade entre a população continental africana e a respetiva diáspora.
A Plataforma Gueto foi apresentada como uma estrutura de unificação de diferentes coletivos africanos em Lisboa e uma organização política alternativa. Para que tal estrutura funcione, salienta a necessidade das ações se fundarem no sentimento de humildade, no processo de aprendizagem inter e intragrupal, assim como no combate ao protagonismo individual e coletivo.
Baseando nas suas experiências pessoais, aborda a questão do racismo institucional (no sistema judicial e policial) que, segundo defende, só é ultrapassável através da educação vista como central no processo de consciencialização política.
Sobre Cabo Verde fala do papel das Universidades enquanto estruturas de reprodução das lógicas colonialistas e da necessidade de uma luta para a mudança dos conteúdos programáticos das instituições de ensino nacional. Ressalta a língua cabo-verdiana enquanto um importante instrumento de mobilização e chama a atenção do risco de instrumentalização político-partidária dos jovens cabo-verdianos numa sociedade já por si só demasiada partidarizada.
Por fim destaca a luta contra a segregação e o abuso policial no contexto português como parte de uma luta maior contra o colonialismo nas suas mais diversas formas, apresentando o racismo como uma faceta deste processo colonialista que tem como objetivo o bloqueio ao acesso ao poder por parte das populações não-brancas e como exemplo indica o caso da securitização das relações entre o Estado e as comunidades dos bairros da Amadora, onde as forças policiais assumem cada vez mais protagonismo.
A última roda de conversa, introduzida por Bernardino Gonçalves, abordou a educação financeira enquanto condição essencial de desenvolvimento de uma economia pessoal e comunitária. Falando da falta de recursos como fator de condicionamento de liberdade pessoal e familiar, o orador entende que a geração de rendimento comunitário deve ser encarada com especial atenção.
Apoiado em dados estatísticos nacionais de literacia financeira indica que 53% das famílias não poupam, das quais 83% não o fazem porque simplesmente não conseguem. Para explicar essa situação afirma que em Cabo Verde, sobretudo no contexto santiaguense, existe uma cultura de investimentos em bens efémeros que considera ser má e que tem como como consequência o bloqueio da prática da poupança.
Assim, apresenta o consumo em produtos comunitários e locais como uma estratégia de promoção da economia local e comunitária e uma forma de substituir a cultura de esbanjamento por uma cultura de acumulação de rendimento comunitário. Para isso, a educação financeira, sobretudo no seio da população infanto-juvenil, é apresentada como uma ferramenta que possibilita a mudança de comportamento financeiro.

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