Por Yuri Queita
Nos
dias 9 e 10 de junho último, realizou-se no Centro Dia do Castelão, em parceria
com a Associação Comunitária de Castelão, a primeira edição da Universidadi Nhanha Bongolon, um espaço
informal e horizontal de discussão criado com vista a alcançar a renascença
africana por via de luta libertária e pan-africana. Apresentada como uma
proposta epistemológica e política engajada, o espaço espera funcionar como uma
plataforma de convergência de saberes e conhecimentos locais e globais. Nesta
lógica, a primeira edição da Universidade foi organizada à volta de cinco rodas
de conversa.
A
primeira, sobre os desafios de se pensar pelas nossas próprias cabeças no
contexto de luta pan-africana e a necessidade da adoção de uma epistemologia
militante, introduzida por Alexssandro Robalo, que começou por elucidar sobre o
processo de controlo intelectual e mental perpetuado pelo sistema colonial e
esclavagista europeu, salientando que a desvalorização deste fato poderá ser um
fator condicionador de luta emancipatória africana. No seu entender, esta falta
de consciência contribuiu para que a produção de conhecimento endógena ficasse
subalternizada aos interesses extrativistas europeus, conhecimento esse
definido por critérios e valores de índole ocidental. Esta prática tem como
finalidade limitar as opções metodológicas dos produtores endógenos de
conhecimento a uma hierarquia epistemológica, retirando da esfera de
conhecimento os produtos produzidos no continente africano, latino-americano,
asiático ou indígena de forma geral.
De
forma a contornar essa situação, figuras como Amílcar Cabral e Cheikh Anta Diop
são evocadas como referências epistemológicas a continuar. Denuncia as estratégias
europeias em abafar a influência dos produtores de epistemologias africanas
através da limitação da sua atuação, inclusive nos seus países de origem em
conluio com os intelectuais assimilados. Nesta mesma linha, a revolução
haitiana é apresentada como um modelo revolucionário que conseguiu sem uma
liderança personalizada atingir os objetivos propostos, embora normalmente
secundarizado, propositadamente, em relação à revolução francesa, com vista o
seu esquecimento e desconhecimento.
Por
fim, enaltece a ideia de impossibilidade de uma consciencialização militante e
revolucionária no âmbito da unidade africana sem uma reflexão profunda da nossa
realidade. Neste aspeto, considera que iniciativas como a escola piloto do
PAIGC, os estudos sobre África desenvolvidos por alguns coletivos
cabo-verdianos e a própria Universidadi
Nhanha Bongolon podem ser entendidas como exemplos de abordagens
epistemológicas alternativas e de diálogo horizontal no processo de produção e
difusão de conhecimentos africanos.
A
segunda roda de conversa foi introduzida por Abel Djassi Amado que falou sobre
as relações diplomáticas securitizadas e militarizadas entre os Estados Unidos
e Cabo Verde a partir de quatro eixos analíticos: i) Cabo Verde no imaginário
geopolítico ocidental; ii) conceptualização dos termos securitização e
militarização; iii) relação histórica entre os Estados Unidos e Cabo Verde; iv)
as relações diplomáticas entre os dois Estados na sua vertente militarista e
securitária.
Começa
por enaltecer a valorização do posicionamento geográfico estratégico de Cabo
Verde, que culminou na indicação de Cabo Verde como um Estado Âncora para os
Estados Unidos. Portanto, isto faz com que apesar do papel estratégico das
embaixadas dos Estados Unidos, foi o AFRICOM a se titularizar como agente
institucional de referência nas relações dos Estados Unidos com o continente
africano de modo geral e de Cabo Verde em particular. Contudo, afirma que ao
longo da história recente foram experimentados diferentes ciclos nas relações dos
Estados Unidos com o continente africano, dependendo do contexto económico e
político mundial no geral e africano em particular, bem como conforme as
sensibilidades das diferentes lideranças norte-americanas na pós-segunda guerra
mundial. Com Cabo Verde em particular, as relações dos Estados Unidos no
período pós-independência foram marcadas por fatores humanitários de
desenvolvimento, com a USAID a desempenhar um papel de destaque nesse processo.
A partir dos anos de 1990, deu-se a entrada no país os Corpos da Paz, num
processo de substituição de agências estatais pelas organizações de sociedade
civil como protagonistas nas relações exteriores.
Defende
que após o 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos voltaram ao projeto de
securitização e militarização diplomático à escala global. No que concerne às
relações dos Estados Unidos com o continente africano em geral e Cabo Verde no
particular, este contexto fez emergir uma dupla abordagem: i)
securitária/militarista fortemente conectada com as operações da AFRICOM (hard-power); ii) desenvolvimentista e
preventiva ligada aos projetos implementados no quadro do MCC/MCA, conectada
aos compromissos com os princípios de democracia e de governação segundo os
critérios definidos por Washington (soft-power).
Por
fim, observa que à semelhança de outros Estados africanos, Cabo Verde
candidata-se a assumir a sede da AFRICOM, intenção essa que responsabiliza
politicamente o Governo de Cabo Verde no processo de afirmação crescente dos
Estados Unidos no continente africano, como mostram a centralidade da AFRICOM
no relacionamento atual entre os dois países, comprovado no número de
exercícios e financiamentos de organização e edificação do Centro de Segurança
Marítima e da aprovação do acordo SOFA.
A
terceira conversa girou à volta da resposta da questão colocada por Kwesi Ta
Fari a Astrid Umaru e Lúcia Cardoso se é possível uma alimentação vegetariana e
uma cosmética natural em Cabo Verde.
Como
introdução da conversa, Kwesi Ta Fari aborda o impacto do colonialismo na alimentação
e nas gastronomias africanas, consubstanciado numa nova dieta entendida como
prejudicial, no quadro de uma conspiração global e racista para o
enfraquecimento das populações africanas (Nutricídio). Suportado por dados
estatísticos, aponta que anualmente morrem cerca de 600 mil africanos, vítimas
de doenças de forro nefrológica (800 mortes anual em Cabo Verde), o que mostra
que estamos perante a formulação de um sistema de saúde que promove a doença
por interesse da indústria farmacêutica.
Destaca
o impacto do marketing por detrás da indústria alimentar e cosmética ocidentais
nesse processo e avança o exemplo do mercado de Sucupira onde existem cerca de
80 barracas a comercializar cremes e sabonetes de embranquecimento da pele
(despigmentadores). Como exemplo histórico de resistência alimentar aponta as
práticas das estruturas sociais tradicionais africanas, em que destaca as
tabankas, os quilombos e as atuais iniciativas de entidades
pan-africanistas.
Astrid
Umaru, por sua vez, exalta a faceta cultural da alimentação tradicional
africana e a sua necessária valorização. Reforça a ideia do papel da
publicidade e do marketing ocidental no processo da criação da necessidade de
consumo e relaciona o estilo de vida alimentar atual com as enfermidades
mencionada por Ta Fari. Nesse aspeto, salienta o impacto do uso de agrotóxicos
por parte dos agricultores, situação só contornada através de uma produção
alimentar biológica e por um maior controlo no abate de animais e comercialização
das respetivas carnes em todos os municípios do país.
Por
fim, fala da necessidade de uma alimentação vegana ou baseada em produtos
vegetais como instrumento de construção de um sujeito africano físico e
mentalmente saudável.
Lúcia
Cardoso começa com um apelo à necessidade de ligar o consumo alimentar
sustentável com a produção familiar ou a compra direta dos produtos nos
produtores, sua prática no âmbito da produção da marca cosmética made in Cabo Verde denominada Badia, da
qual falou sobre a metodologia de confeção caseira implementada, que integra um
projeto de empoderamento de um grupo de mulheres da ilha do Maio na apanha do
sal para a confeção dos produtos.
No
segundo dia do encontro, realizado no Centro Multiuso de Castelão, realizou-se
duas rodas de conversa, sendo a primeira introduzida por Flávio Almada que
abordou as outras formas de organização política a partir da experiência da
Plataforma Gueto no contexto português, começando por falar sobre a necessidade
de haver uma maior conetividade entre a população continental africana e a
respetiva diáspora.
A
Plataforma Gueto foi apresentada como uma estrutura de unificação de diferentes
coletivos africanos em Lisboa e uma organização política alternativa. Para que
tal estrutura funcione, salienta a necessidade das ações se fundarem no
sentimento de humildade, no processo de aprendizagem inter e intragrupal, assim
como no combate ao protagonismo individual e coletivo.
Baseando
nas suas experiências pessoais, aborda a questão do racismo institucional (no
sistema judicial e policial) que, segundo defende, só é ultrapassável através
da educação vista como central no processo de consciencialização política.
Sobre
Cabo Verde fala do papel das Universidades enquanto estruturas de reprodução das
lógicas colonialistas e da necessidade de uma luta para a mudança dos conteúdos
programáticos das instituições de ensino nacional. Ressalta a língua
cabo-verdiana enquanto um importante instrumento de mobilização e chama a
atenção do risco de instrumentalização político-partidária dos jovens
cabo-verdianos numa sociedade já por si só demasiada partidarizada.
Por
fim destaca a luta contra a segregação e o abuso policial no contexto português
como parte de uma luta maior contra o colonialismo nas suas mais diversas
formas, apresentando o racismo como uma faceta deste processo colonialista que
tem como objetivo o bloqueio ao acesso ao poder por parte das populações
não-brancas e como exemplo indica o caso da securitização das relações entre o
Estado e as comunidades dos bairros da Amadora, onde as forças policiais
assumem cada vez mais protagonismo.
A
última roda de conversa, introduzida por Bernardino Gonçalves, abordou a
educação financeira enquanto condição essencial de desenvolvimento de uma
economia pessoal e comunitária. Falando da falta de recursos como fator de
condicionamento de liberdade pessoal e familiar, o orador entende que a geração
de rendimento comunitário deve ser encarada com especial atenção.
Apoiado
em dados estatísticos nacionais de literacia financeira indica que 53% das
famílias não poupam, das quais 83% não o fazem porque simplesmente não
conseguem. Para explicar essa situação afirma que em Cabo Verde, sobretudo no
contexto santiaguense, existe uma cultura de investimentos em bens efémeros que
considera ser má e que tem como como consequência o bloqueio da prática da
poupança.
Assim,
apresenta o consumo em produtos comunitários e locais como uma estratégia de
promoção da economia local e comunitária e uma forma de substituir a cultura de
esbanjamento por uma cultura de acumulação de rendimento comunitário. Para
isso, a educação financeira, sobretudo no seio da população infanto-juvenil, é
apresentada como uma ferramenta que possibilita a mudança de comportamento
financeiro.
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