quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Universidadi Nhanha Bongolon (I). Memorando


Por Yuri Queita

Nos dias 9 e 10 de junho último, realizou-se no Centro Dia do Castelão, em parceria com a Associação Comunitária de Castelão, a primeira edição da Universidadi Nhanha Bongolon, um espaço informal e horizontal de discussão criado com vista a alcançar a renascença africana por via de luta libertária e pan-africana. Apresentada como uma proposta epistemológica e política engajada, o espaço espera funcionar como uma plataforma de convergência de saberes e conhecimentos locais e globais. Nesta lógica, a primeira edição da Universidade foi organizada à volta de cinco rodas de conversa.
A primeira, sobre os desafios de se pensar pelas nossas próprias cabeças no contexto de luta pan-africana e a necessidade da adoção de uma epistemologia militante, introduzida por Alexssandro Robalo, que começou por elucidar sobre o processo de controlo intelectual e mental perpetuado pelo sistema colonial e esclavagista europeu, salientando que a desvalorização deste fato poderá ser um fator condicionador de luta emancipatória africana. No seu entender, esta falta de consciência contribuiu para que a produção de conhecimento endógena ficasse subalternizada aos interesses extrativistas europeus, conhecimento esse definido por critérios e valores de índole ocidental. Esta prática tem como finalidade limitar as opções metodológicas dos produtores endógenos de conhecimento a uma hierarquia epistemológica, retirando da esfera de conhecimento os produtos produzidos no continente africano, latino-americano, asiático ou indígena de forma geral.
De forma a contornar essa situação, figuras como Amílcar Cabral e Cheikh Anta Diop são evocadas como referências epistemológicas a continuar. Denuncia as estratégias europeias em abafar a influência dos produtores de epistemologias africanas através da limitação da sua atuação, inclusive nos seus países de origem em conluio com os intelectuais assimilados. Nesta mesma linha, a revolução haitiana é apresentada como um modelo revolucionário que conseguiu sem uma liderança personalizada atingir os objetivos propostos, embora normalmente secundarizado, propositadamente, em relação à revolução francesa, com vista o seu esquecimento e desconhecimento. 
Por fim, enaltece a ideia de impossibilidade de uma consciencialização militante e revolucionária no âmbito da unidade africana sem uma reflexão profunda da nossa realidade. Neste aspeto, considera que iniciativas como a escola piloto do PAIGC, os estudos sobre África desenvolvidos por alguns coletivos cabo-verdianos e a própria Universidadi Nhanha Bongolon podem ser entendidas como exemplos de abordagens epistemológicas alternativas e de diálogo horizontal no processo de produção e difusão de conhecimentos africanos.
A segunda roda de conversa foi introduzida por Abel Djassi Amado que falou sobre as relações diplomáticas securitizadas e militarizadas entre os Estados Unidos e Cabo Verde a partir de quatro eixos analíticos: i) Cabo Verde no imaginário geopolítico ocidental; ii) conceptualização dos termos securitização e militarização; iii) relação histórica entre os Estados Unidos e Cabo Verde; iv) as relações diplomáticas entre os dois Estados na sua vertente militarista e securitária.
Começa por enaltecer a valorização do posicionamento geográfico estratégico de Cabo Verde, que culminou na indicação de Cabo Verde como um Estado Âncora para os Estados Unidos. Portanto, isto faz com que apesar do papel estratégico das embaixadas dos Estados Unidos, foi o AFRICOM a se titularizar como agente institucional de referência nas relações dos Estados Unidos com o continente africano de modo geral e de Cabo Verde em particular. Contudo, afirma que ao longo da história recente foram experimentados diferentes ciclos nas relações dos Estados Unidos com o continente africano, dependendo do contexto económico e político mundial no geral e africano em particular, bem como conforme as sensibilidades das diferentes lideranças norte-americanas na pós-segunda guerra mundial. Com Cabo Verde em particular, as relações dos Estados Unidos no período pós-independência foram marcadas por fatores humanitários de desenvolvimento, com a USAID a desempenhar um papel de destaque nesse processo. A partir dos anos de 1990, deu-se a entrada no país os Corpos da Paz, num processo de substituição de agências estatais pelas organizações de sociedade civil como protagonistas nas relações exteriores.
Defende que após o 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos voltaram ao projeto de securitização e militarização diplomático à escala global. No que concerne às relações dos Estados Unidos com o continente africano em geral e Cabo Verde no particular, este contexto fez emergir uma dupla abordagem: i) securitária/militarista fortemente conectada com as operações da AFRICOM (hard-power); ii) desenvolvimentista e preventiva ligada aos projetos implementados no quadro do MCC/MCA, conectada aos compromissos com os princípios de democracia e de governação segundo os critérios definidos por Washington (soft-power).
Por fim, observa que à semelhança de outros Estados africanos, Cabo Verde candidata-se a assumir a sede da AFRICOM, intenção essa que responsabiliza politicamente o Governo de Cabo Verde no processo de afirmação crescente dos Estados Unidos no continente africano, como mostram a centralidade da AFRICOM no relacionamento atual entre os dois países, comprovado no número de exercícios e financiamentos de organização e edificação do Centro de Segurança Marítima e da aprovação do acordo SOFA.
A terceira conversa girou à volta da resposta da questão colocada por Kwesi Ta Fari a Astrid Umaru e Lúcia Cardoso se é possível uma alimentação vegetariana e uma cosmética natural em Cabo Verde.
Como introdução da conversa, Kwesi Ta Fari aborda o impacto do colonialismo na alimentação e nas gastronomias africanas, consubstanciado numa nova dieta entendida como prejudicial, no quadro de uma conspiração global e racista para o enfraquecimento das populações africanas (Nutricídio). Suportado por dados estatísticos, aponta que anualmente morrem cerca de 600 mil africanos, vítimas de doenças de forro nefrológica (800 mortes anual em Cabo Verde), o que mostra que estamos perante a formulação de um sistema de saúde que promove a doença por interesse da indústria farmacêutica.
Destaca o impacto do marketing por detrás da indústria alimentar e cosmética ocidentais nesse processo e avança o exemplo do mercado de Sucupira onde existem cerca de 80 barracas a comercializar cremes e sabonetes de embranquecimento da pele (despigmentadores). Como exemplo histórico de resistência alimentar aponta as práticas das estruturas sociais tradicionais africanas, em que destaca as tabankas, os quilombos e as atuais iniciativas de entidades pan-africanistas. 
Astrid Umaru, por sua vez, exalta a faceta cultural da alimentação tradicional africana e a sua necessária valorização. Reforça a ideia do papel da publicidade e do marketing ocidental no processo da criação da necessidade de consumo e relaciona o estilo de vida alimentar atual com as enfermidades mencionada por Ta Fari. Nesse aspeto, salienta o impacto do uso de agrotóxicos por parte dos agricultores, situação só contornada através de uma produção alimentar biológica e por um maior controlo no abate de animais e comercialização das respetivas carnes em todos os municípios do país.
Por fim, fala da necessidade de uma alimentação vegana ou baseada em produtos vegetais como instrumento de construção de um sujeito africano físico e mentalmente saudável.  
Lúcia Cardoso começa com um apelo à necessidade de ligar o consumo alimentar sustentável com a produção familiar ou a compra direta dos produtos nos produtores, sua prática no âmbito da produção da marca cosmética made in Cabo Verde denominada Badia, da qual falou sobre a metodologia de confeção caseira implementada, que integra um projeto de empoderamento de um grupo de mulheres da ilha do Maio na apanha do sal para a confeção dos produtos.
No segundo dia do encontro, realizado no Centro Multiuso de Castelão, realizou-se duas rodas de conversa, sendo a primeira introduzida por Flávio Almada que abordou as outras formas de organização política a partir da experiência da Plataforma Gueto no contexto português, começando por falar sobre a necessidade de haver uma maior conetividade entre a população continental africana e a respetiva diáspora.
A Plataforma Gueto foi apresentada como uma estrutura de unificação de diferentes coletivos africanos em Lisboa e uma organização política alternativa. Para que tal estrutura funcione, salienta a necessidade das ações se fundarem no sentimento de humildade, no processo de aprendizagem inter e intragrupal, assim como no combate ao protagonismo individual e coletivo.
Baseando nas suas experiências pessoais, aborda a questão do racismo institucional (no sistema judicial e policial) que, segundo defende, só é ultrapassável através da educação vista como central no processo de consciencialização política.
Sobre Cabo Verde fala do papel das Universidades enquanto estruturas de reprodução das lógicas colonialistas e da necessidade de uma luta para a mudança dos conteúdos programáticos das instituições de ensino nacional. Ressalta a língua cabo-verdiana enquanto um importante instrumento de mobilização e chama a atenção do risco de instrumentalização político-partidária dos jovens cabo-verdianos numa sociedade já por si só demasiada partidarizada.
Por fim destaca a luta contra a segregação e o abuso policial no contexto português como parte de uma luta maior contra o colonialismo nas suas mais diversas formas, apresentando o racismo como uma faceta deste processo colonialista que tem como objetivo o bloqueio ao acesso ao poder por parte das populações não-brancas e como exemplo indica o caso da securitização das relações entre o Estado e as comunidades dos bairros da Amadora, onde as forças policiais assumem cada vez mais protagonismo.
A última roda de conversa, introduzida por Bernardino Gonçalves, abordou a educação financeira enquanto condição essencial de desenvolvimento de uma economia pessoal e comunitária. Falando da falta de recursos como fator de condicionamento de liberdade pessoal e familiar, o orador entende que a geração de rendimento comunitário deve ser encarada com especial atenção.
Apoiado em dados estatísticos nacionais de literacia financeira indica que 53% das famílias não poupam, das quais 83% não o fazem porque simplesmente não conseguem. Para explicar essa situação afirma que em Cabo Verde, sobretudo no contexto santiaguense, existe uma cultura de investimentos em bens efémeros que considera ser má e que tem como como consequência o bloqueio da prática da poupança.
Assim, apresenta o consumo em produtos comunitários e locais como uma estratégia de promoção da economia local e comunitária e uma forma de substituir a cultura de esbanjamento por uma cultura de acumulação de rendimento comunitário. Para isso, a educação financeira, sobretudo no seio da população infanto-juvenil, é apresentada como uma ferramenta que possibilita a mudança de comportamento financeiro.

Versão pdf.